Agora que mais uma grande volta (a Évora) se aproxima para a Susana, tenho andado a pensar no porquê de querer fazê-la. Qual a razão para eu querer pedalar durante dois dias, sentir fome, calor, frio, dor, cãibras. A verdade é que eu não gosto da viagem quando estou nela; sinto que o meu corpo vai ceder a qualquer momento e metro a metro o meu cérebro luta consigo mesmo para dar um aspecto resoluto e determinado e assim conseguir manter o corpo a trabalhar. O sol a assar os braços, o suor a escorrer interminavelmente pela testa para os olhos, as pernas que por vezes deixam de ter sensação e é como uma benção até que a sensação volta e é a dobrar. A fome ao início que depressa desaparece. O corpo deixa a comida para o fim das prioridades e preocupa-se mais com a desidratação.
Mesmo assim, com tantas recordações do tormento que estas grandes viagens são, anseio pelo momento em que darei a primeira pedalada no dia da volta. Quando lá estamos, odiamos e depois que acaba só queremos regressar. Para mim pedalar sempre foi como que uma forma de aclarar os pensamentos, manter o caminho perceptível e soprar a neblina que se vai pondo à volta, que não deixa mais ver de onde vim e para onde queria ir. Nos momentos de descontracção, leia-se descidas, em que o corpo não grita para parar, posso pensar de forma clara sobre qualquer coisa e ver o problema de outro ângulo. Consigo ver de onde vim, porque fiz o que fiz e onde quero ir e isso já é mais do que muitas pessoas conseguem.
Quando eu estava a aprender a andar de bicicleta, não olhava em frente, apenas para o chão imediatamente à frente da roda. Inevitavelmente, eu passava mais tempo a voar e espatifar-me que a pedalar. Todas as quedas foram diferentes e muitas deixaram marcas na carne, embora nada que não passasse. No entanto, doíam o suficiente para durante uns dias eu pensar que pedalar era giro, mas andar a pé era mais giro. Por vezes, esses dias de desamor com as 2 rodas calhavam na mesma altura da Volta a Portugal ou outra volta qualquer com transmissão na TV. Em dias de sorte, eu via algo que durava uns segundos apenas, mas que muito me espantava. Via a cara de um ciclista no meio do mini-pelotão que ia à frente da corrida, que a poucos km's do final, numa subida a pique e embora ainda há pouco nada o fizesse prever, põe-se de pé na bicicleta e sai disparado deixando os restantes sem reacção. Naqueles segundos em que o ciclista decide atacar, algo se passa no seu inconsciente, uma espécie de tiro de partida que o seu cérebro e corpo dão a avisar que tudo está perfeito naquele momento de claridade e é a hora de partir em frente. Ainda há poucos minutos atrás, a cara do ciclista transparecia sofrimento e talvez pensasse em desistir, mas num ápice tudo muda e deixa de sentir dor, sente somente que está a perseguir um momento de claridade.
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